Desabafos

Novidades e propostas desafiantes pela frente. Que nos fazem sorrir e piscar o olho - "afinal ainda acontecem coisas, mesmo quando querem oferecer-nos o quadro de medo e de crise". E depois, ao mesmo tempo, fazer contas à vida e perguntar se isto é isso... vida.

Trabalhar como um robot e andar sempre a correr. Não ter tempo para respirar.
Sentir que este país está virado do avesso, a fazer tudo mal. E mais assustador do que isso, que as pessoas parecem obedecer sem questionar muito. 

E continam a parecer valorizar o menos importante.

A formatação parece estar a ser bem sucedida. Continua a ser transmitida a mensagem de que precisamos de algo que não temos. Precisamos do casaco novo porque o outro já não está nas revistas deste ano e por isso é 'velho'. Precisamos daquela máquina top que faz comida sem termos que cozinhar - ficamos livres também do cheiro bom espalhado pela casa, do provar com a colher de pau e de acrescentar o que nos apetece com a minúcia de um feiticeiro... Precisamos de televisões cada vez maiores e com sistemas de som mais refinados, para vermos melhor as manchetes deprimentes e non sense que todos os dias passam pelos telejornais. E precisamos de mais canais, para demorarmos mais tempo nos zappings até voltar ao mesmo e concluir que não está a dar nada de jeito. Precisamos de um carro novo. E precisamos de uma bicicleta porque é desta que vamos ser saudáveis... mas ainda não a experimentamos porque também precisamos das luvas e do capacete e ainda não conseguimos arranjar tempo para ir comprá-los. Precisamos de começar a fazer yoga, para escapar deste stress todo. E precisamos de comprar velas e incenso e um tapete e umas calças próprias. Mas entretanto temos que fazer horas extra porque estamos a ficar sem dinheiro. 

Trabalhamos como mouros, seja lá o que isso quer dizer. Mas como são tantas horas e andamos tão frustrados com os patrões, metade do tempo passamos no facebook (ou a escrever em blogs) ou a dar água sem caneco. 

E ao final do dia vamos correr a correr, para termos aquele corpo de sonho que fica bem nas roupas que aparecem nas revistas. E como a satisfação não chega, há ainda espaço para as massagens modeladoras e todos os tratamentos invasivos e abrasivos que prometem o que é contra natura - acabar com a celulite, com as estrias, com as rugas, com os pêlos.

Enquanto continuarmos a consumir, tudo está bem. Consomem todos, os que têm muito e os que têm muito pouco, porque o mercado é atento e 'solidário' com quem não tem para gastar. E ajuda! - produz ainda mais 'quinquilhada' que ninguém precisa mas que é ao preço da chuva, faz promoções, oferece outro pelo mesmo preço, dá cartões de desconto.

E vamos andando entretidos ou adormecidos entre um desejo e o outro. Ou a máquina fotográfica nova (que só vamos usar duas vezes nas férias porque fora disso não temos tempo para fazer coisas dignas de fotografias), ou a viagem com pulseirinha não sei onde, ou  a Playstation para o nosso filhote, coitadinho, que pede o que já todos os amigos têm. 

E entre a motivação para alcançar o objecto seguinte e a angústia porque afinal conseguimos e isso afinal não veio mudar nada, não perdemos tempo a reflectir sobre o que seria realmente significativo - podermos dar ao nosso bairro, cidade, país, as coisas em que realmente somos bons e ver o meio à nossa volta a melhorar com a nossa energia. Podermos ter filhos e sermos protegidos por isso. Podermos dar-lhes a rua, os parques, as praças. Podermos trabalhar com prazer e com dignidade. Podermos acreditar que o que uma comunidade quer, é suficiente para discutir e quem sabe mudar a forma como se governa. Podermos ter férias. Podermos andar a pé ou de transportes públicos para nos deslocarmos de um lado para o outro. Podermos ter pessoas à nossa volta com quem podemos celebrar e festejar a vida, sem parecer uma reunião de dramas e dificuldades curadas com alguns copos a mais. Podermos ir passar fins-de-semana à neve ou à praia ou ao campo. Podermos fazer mais coisas com as nossas próprias mãos. Poder ter tempo para a nossa família, para os nossos pais, irmãos, para o cão, para os filhos, para o amor, para os amigos.

Tempo para descobrir o que realmente interessa. 






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